(925) O 25 de Abril e a História.
I
“Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes,
destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de
rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25
de Abril.
II
Na perspectiva de então, havia dois problemas principais a
resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo
regime.
III
Quanto à descolonização havia trunfos para o realizar em boa
ordem e com a vantagem para ambas as partes:
o exército português não fora
batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas
contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte
homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e
o Futuro do General Spínola, que tivera a aceitação nacional e poderia servir
de ponto de partida para uma base maleável de negociações.
As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes,
ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é,
escalonada e honrosa.
Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas
sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder.
Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso,
fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e
africanos que confiavam neles.
IV
Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.
V
Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e
inqualificável deve-se a duas causas.
Uma foi que o PCP, infiltrado no
exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em ordem, mas num
colapso imediato que fizesse cair esta parte de África na zona soviética.
O essencial era não dar tempo de resposta às potências
ocidentais.
De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas
insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes
vieram mostrar.
VI
Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que
a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por
cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das
Forças Armadas.
Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para
casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto
das tropas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu.
Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de
“revolucionários”.
E nisso foram ajudados por homens políticos altamente
responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização
num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do exército para
que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis.
VII
A operação militar mais difícil é a retirada; exige em grau elevadíssimo
o moral da tropa.
Neste caso a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e
por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso
destituídos de sentimento nacional.
Não é ao soldadinho que se deve imputar
esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram conscientemente a cadeia de
comando, aos que lançaram palavras de ordem que nas circunstâncias do momento
eram puramente criminosas.
Isto quanto à descolonização que não houve.
VIII
O outro problema era o da liquidação do regime deposto.
Os
políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar
um governo que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha
graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento,
determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a
nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas,
segundo um critério rigoroso e valores definidos.
IX
Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava,
o julgamento simplesmente não foi feito.
O povo português ficou sem saber se as
acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou
eram simplesmente atoardas.
O princípio da corrupção não foi responsavelmente
denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio.
Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem
encorajados a seguir o mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a
consagração oficial.
Em qualquer caso já hoje não é possível fazer a condenação
dos escândalos do antigo regime, porque outras, talvez piores, os vieram
desculpar.
X
Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total.
Durante longos meses, esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS.
Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e
estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam
praticamente a todos os casos.
A maior parte dos julgados saiu em liberdade.
O público não
chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um.
Nem os acusadores ficaram livres de suspeita de conluio com os
acusados, antes e depois do 25 de Abril.
XI
Havia, também, um maleficio imputado ao antigo regime, que
era o dos crimes de guerra cometidos nas operações militares no Ultramar.
Sobre
isto lançou-se um véu de esquecimento.
As Forças Armadas Portuguesas foram alvo
de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em
pensamentos recalcados.
XII
Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regime, como
não se fez a descolonização.
XIII
Uns homens substituíram outros, quando os homens não
substituíram os mesmos; a um regime monopartidário substituiu-se um regime pluripartidário.
Mas
não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente.
Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de
retórica: “a longa noite fascista”.
Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu
do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral.
XIV
A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão,
foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é
possível edificar.
O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas
suas raízes.
Herdou todos os podres do anterior, mais a vergonha da
deserção.
XV
E com este começo tudo foi possível depois, como num exército
em debandada:
vieram as passagens administrativas, sob capa de democratização
do ensino;
vieram “saneamentos” oportunistas e iníquos, a substituir o
julgamento das responsabilidades;
vieram os bandos militares, resultado da
traição do comando, no campo das operações;
vieram os contrabandistas e os
falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa;
veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo;
veio o controlo da
Imprensa e da Radiotelevisão, pelo governo e pelos partidos, depois de se ter
declarado a abolição da censura;
veio a impossibilidade de se distinguir o interesse
geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a
impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os
oportunistas, a verdade e a mentira;
veio o considerar-se o endividamento como
um meio honesto de viver.
XVI
Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram
por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.
Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida
nova, mas rasgou-se um véu que encobre uma realidade insuportável.
Para
começar, escreveu-se na nossa história uma página ignominiosa de cobardia e
irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só todo o heroísmo
e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa história e que
nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de nação.
Está escrita e não pode ser arrancada do livro.
É preciso
lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe.
Começa por aí o nosso resgate.
XVII
Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não
demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou.
As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no
futuro próximo, merecemo-las, moralmente.
Mas elas são uma prova e uma oportunidade.
Se formos capazes
do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados
e dignos do nome de povo livre e de nação independente.”
António José Saraiva /26 de Janeiro de 1979/ in Diário de
Notícias.
[ ... a compreensão ( parágrafos numeração romana bold ) é minha ! ]
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