25 maio 2008

DEVO RECONHECER QUE CUNHAL NÃO É UM HOMEM INSENSIVEL A CERTAS MUDANÇAS

Palavras de Marcello Caetano em conversa –Brasil 1980 – com Veríssimo Serrão.

Continua Marcello:


“Devo reconhecer que Cunhal não é um homem insensível a certas lembranças. Enquanto Soares o fez, com despudor, até mesmo com ingratidão, Cunhal nunca disse mal de mim.
Ao menos teve sempre a delicadeza de me respeitar”.

Marcelo referia-se aos seus dois ex-alunos Soares e Cunhal:

“ Recordo-os bem, porque ambos foram meus alunos na faculdade. Nessa altura eu dispunha de tempo e a muitos conhecia-os como os meus dedos”:

“ O Mário Soares foi um aluno mediano, mas cumpridor .
Cunhal goste-se ou não dele, é um homem de inteligência superior e que tem uma visão messiânica da vida “


Conta Veríssimo Serrão,
nesta conversa veio então ao de cima a história que circula de que Marcello Caetano fizera exame a Cunhal quando este, ao redor de 1935, se encontrava na prisão:

“ o episódio é verídico, ainda que não recorde já do ano em que ocorreu “
refere M.C".

A mãe do aluno escreveu ao catedrático de Direito Administrativo, a pedir a boa-vontade deste para o filho poder fazer exame sob pena de perder o ano.
Marcello Caetano atendeu à solicitação, devendo Cunhal prestar a segunda chamada de acordo com a sua posição na pauta.


Assim sucedeu, fazendo o aluno uma prova brilhante e recolhendo logo de seguida à prisão.

“Nos meus papéis de Lisboa – afirmou – , guardei a carta de agradecimento da boa e piedosa mãe que assim viu o seu rogo satisfeito”.

relata Veríssimo Serrão:

"O argumento corre por aí, mas, além de errado, pode dizer-se estúpido.

Logo perseguiu M.C.

Não nasci em berço de ouro como Álvaro Cunhal, que era filho de um advogado com nome e dinheiro. Também o Mário Soares nunca precisou de trabalhar, porque o pai se incumbia de o fazer no colégio que tinha em Lisboa.
Foi sempre o que pode chamar-se um menino rico".

E Marcello explanou ainda o seu pensamento:

"Quem devia então sentir complexos de classe?

Eles ou o Doutor Salazar e eu que viemos da humildade da terra e somos, na realidade, filhos do povo? “

Continua Marcello:

“ Por isso sempre amei o povo de onde vim .
Faço parte da gente humilde que teve de lutar para subir na vida a pulso”.

E olhando-me depois fixamente:

“Podem dizer o mesmo os chefes e muitos aproveitadores do 25 de Abril, saídos da abastada e podre burguesia? “


Um pau mandado ; todos se servem dele !


Nós , teus pais , depois de havermos cogitado com diurna e nocturna aplicação sobre o que mais convém à tua felicidade, resolvemos de comum acordo que o melhor dote que se te podia dar era a liberdade, pois que a liberdade é, como bem dizem os filósofos, o maior dos bens, superior ao próprio ouro.
Escola não tens, porque te poderia fazer mal o puxar muito pela cabeça nos estudos, e lá diz o ditado que “ antes burro vivo “, como tu estás, “do que doutor morto”, como tão frequentemente se tem visto.

Ramalho Ortigão 1880



BOA TARDE .

in




Marcello Caetano
Confidências no exílio
Joaquim Veríssimo Serrão
(pgs. 332 e 333)
editorial verbo
1985